27 de jan. de 2012

Vivo, logo, desejo...

“Simples assim!”
  Será?

Eram duas jovens conversando atrás de mim na fila do banco. Uma relatando à outra sobre a confusão de sentimentos instalada, desde que se percebera atraída por um colega da faculdade. A relação com o namorado não era a mesma, definindo-a como morna. A amiga, na tentativa de auxiliar ou piorar o conflito – como sabê-lo?- lança mão de toda sua experiência de vida para explicar que quando a relação chega em tal estágio é sinal de que o amor acabou, se é que existiu algum dia. A outra emudeceu.

Inevitável, para mim, imaginar em como ela estaria processando a fala da conselheira.

Impossível perceber as relações de forma tão estanque quando se está inserido em um processo de crescimento, que envolve o reconhecimento das próprias emoções e motivações. As telenovelas e a psicologia de banca de jornal perdem a graça. O horóscopo diário deixa de fazer sentido. “O conselho amigo” já não é tão necessário, pois existe a consciência de que ele está atrelado às experiências de outra pessoa, com valores diferentes.

Há uma tendência natural, em situações conflitantes como a descrita, que o desabafo pareça a melhor opção. O que leva à sua prática é também a necessidade da confirmação das próprias convicções e sentimentos, que pode resultar, no final das contas, em culpa; aquele que ouve e aconselha faz aumentar o sofrimento, frustrando todas as esperanças do solicitante.

Nesse contexto, e em diversos outros, é comum projetar em outra pessoa a capacidade de discernimento e as necessidades de aprovação e solução para a problemática, na expectativa de que ela (a outra pessoa) funcione como eco para aquilo que está dentro daquele que projeta e que desconhece tal potencial. E isso não para por aqui. As projeções podem variar entre imagens carregadas de sensações positivas ou negativas, geradoras de afinidades ou antipatias, de amor e de paixão ou aversão, além de inúmeras expectativas.


E agora? O que faço com isso?

Para grande parte das mulheres, lidar com sentimentos despertados a partir da convivência com um homem que não é o seu companheiro pode se tornar uma experiência conflitante. É provável que a nossa cultura monogâmica e de bases machistas exerça uma forte contribuição, e conduza a conceitos extremistas sobre o tema, forçando uma tentativa de "homicídio" dos instintos vibrantes da energia vital e que, necessariamente, não estão vinculados ao sexo.

Tende, muitas vezes, a confundir os sentimentos, julgando-se apaixonada e traidora. Desconecta-se de si mesma quando desiste de sentir-se viva, por falta de compreensão dos impulsos e por culpa e esta última aumenta quando o desejo se manifesta ou se concretiza de forma desfavorável à sua maturidade e ao seu preparo em lidar com ela.



Desejar, sentir-se atraída, encantar-se, pode fazer parte do conjunto de sentimentos projetados em alguém, assumindo esse o ônus por tal processo, quando na verdade ele também projeta. Fácil de provocar confusão. A maioria das pessoas só acredita na existência do amor ou do desamor, ignorando um longo caminho que liga os extremos e de onde podem surgir as mais fantásticas relações de amizade, cumplicidade e afeto, sem necessariamente comprometer um relacionamento pré-existente.


Ainda do ponto de vista comum (amor ou desamor), se a atração acontece, há entrega ou repressão. Se há entrega, pode surgir a culpa; se há repressão, episódio semelhante pode ocorrer no futuro, obrigando um olhar mais cauteloso e compreensivo sobre si mesmo, ignorado em oportunidades anteriores.

Não é simples lidar com esses sentimentos quando não se tem ao menos a noção de que a condição para se desejar alguém não é simplesmente o amor ou a paixão. A condição é estar vivo. O “poder” que o outro exerce sobre o desejo de alguém é o de um dispositivo que favorece a descoberta, o contato com essa maravilhosa energia criadora a que chamamos sexualidade, e que está dentro de cada um.

De posse dessa noção e das inúmeras escolhas que se pode fazer – da substituição do par ao investimento de tais sentimentos na relação já existente – é louvável lembrar que o problema não coabita no despertar dos impulsos, mas na maneira como se lida com as escolhas a partir deles.


O narcisismo nas relações

Narciso morreu apreciando a própria imagem, projetada nas águas de uma fonte, completamente entorpecido com a beleza apresentada.  Contextualizando o mito, não seria estranho imaginar que parte das relações também se baseia nos sentimentos originados do reflexo da própria imagem, percebido no olhar alheio. Enamorar-se de alguém pode estar atrelado ao encantamento por si mesmo espelhado em sua íris e, dessa forma, deixar de gostar vincula-se à morte da projeção de si mesmo no outro.

Amar está além das próprias necessidades de autoafirmação. É o olhar generoso para outra individualidade. Envolve a compreensão do “não-eu”, livre do egoísmo que teima na busca da própria realização, desconsiderando os limites da relação. É o bastar-se, mas receptivo às investidas que emanam de fora. O encontro de si mesmo, independente, solitário, amadurecido e com pontos de interseção bem definidos.

Não se trata de tarefa fácil, mais uma jornada cujos dividendos afetivo-emocionais podem fazer valer o investimento, se observadas as reais necessidades envolvidas na situação em comento e a garantia de um bem estar resultante, independente do caminho escolhido.


Ana Virgínia Almeida Queiroz – Psicóloga – CRP: 01-7250


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3 comentários:

  1. Muito bom ver seu texto e suas reflexões. Bom inclusive para se pensar nessas questões antes mesmo que elas se projetem em nossos relacionamentos. Nada melhor do que estar atento e pronto para usar toda essa energia de que você fala em favor de algo e/ou alguém que nos faz e fez tão bem até hoje.
    Adoro o seu trabalho, minha querida.
    Abraços.

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  2. Obrigada Aline, qualquer sugestão poderá me enviar por e-mail. Acolherei com prazer. Ana Virgínia

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  3. Oi, Ana! Eu não tinha visto esse texto antes! É ótimo e é uma pena que nossa sociedade não esteja pronta pra ele! Beijo

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